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Problemas da Instrução Normativa 2091/2022 e o arrolamento de bens

Antes de analisar a Instrução Normativa 2091/2022 e as inovações trazidas por ela, cumpre situá-la no ordenamento jurídico, com o delineamento das normas aduaneiras que ela está regulamentando.

O Regulamento Aduaneiro contém 5 procedimentos gerais e 3 especiais. Os procedimentos gerais são:

1) processo de determinação e exigência de crédito tributário (art. 768), qual desdobra-se também num rito para a (1.1) determinação e exigência das medidas de salvaguarda (arts. 769 a 773);

2) processo de perdimento: 2.1. de mercadoria e de veículo (arts. 774 a 776); 2.2 de moeda (art. 777 a 780);

3) Multa do artigo 75 da Lei n. 10.833/2003: processo de aplicação de penalidades pelo transporte rodoviário de mercadoria sujeita a perdimento (art. 781);

4) sanções administrativas aos intervenientes nas operações de comércio exterior (art. 782 a 783);

5) aplicação e exigência dos direitos antidumping e compensatórios (arts. 784 a 789).

E os procedimentos específicos previstos no RA são:

6) procedimentos especiais de fiscalização (arts. 793 até 795);

7) medida cautelar fiscal (art. 796 a 800);

8) declaração de inaptidão de empresas (art. 801).

Sobre a cautelar fiscal, o RA determina que:

Art. 796. O procedimento cautelar fiscal poderá ser instaurado após a constituição do crédito, inclusive no curso da execução judicial da Dívida Ativa da União e de suas autarquias.

A cautelar fiscal é operada quando o sujeito passivo do crédito tributário ou aduaneiro não tiver domicílio certo e tenta ausentar-se ou alienar seus bens, ou quando, tendo domicílio certo, tenta ausentar-se para elidir o adimplemento da obrigação (art. 2º da Lei 8.397/1996).

A aplicação subsidiária do Decreto 70.235/72 e Lei 9.784/99

Existe expressa previsão de aplicação do Decreto 70.235/72 ao processo de determinação e exigência do crédito tributário, no artigo 768 do Regulamento Aduaneiro.

Também se aplica o Decreto 70.235/72 quando a conferência aduaneira é interrompida e o contribuinte manifesta sua inconformidade quando a exigência fiscal referir-se a crédito tributário ou a direito antidumping ou compensatório, nos termos do artigo 570, § 3º, do RA.

Outra hipótese de aplicação do referido decreto é a conversão do perdimento em multa prevista no artigo 23, § 3º, do DL 1455/1976:

Art 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias:

 § 3o  As infrações previstas no caput serão punidas com multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria, na importação, ou ao preço constante da respectiva nota fiscal ou documento equivalente, na exportação, quando a mercadoria não for localizada, ou tiver sido consumida ou revendida, observados o rito e as competências estabelecidos no Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972.

Importante que se note a aplicação subsidiária do Decreto 70.235/72 quando o Decreto-Lei n. 1455/1976 e o DL 37/66 não dispuserem de forma diversa. O mesmo ocorre com a Lei n. 9.784/1999 que regulamenta o processo administrativo da união federal, no âmbito da administração direta ou indireta.

“A Lei 9784, de 29.01.1999, regula o processo administrativo da União Federal, no âmbito da Administração direta e indireta (art 1º). Tal norma pode ser considerada de aplicação subsidiária mesmo aos procedimentos administrativos especificamente regulados em normas próprias, como os processos administrativos fiscais do Decreto 70.235/72 e do Decreto-Lei 1455/1976” (MOURA, Caio Roberto Souto de. Processo administrativo e recursos. IN: FREITAS, Vladimir Passos de. Importação e exportação no direito brasileiro. São Paulo: RT, 2007, p. 213).

No mesmo sentido: PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves. Processo administrativo e recursos no despacho aduaneiro. IN: PEIXOTO, Marcelo Magalhães. Tributação Aduaneira. São Paulo: MP, 2013, p. 71.

Note-se que o prazo da impugnação do Decreto 70.235/72 é de 30 dias. Assim, em regra, as multas aduaneiras têm um prazo de impugnação diverso das infrações aduaneiras puníveis com o perdimento (20 dias).

Não é incomum que a autoridade aduaneira conceda o prazo de 30 dias para impugnação de auto de infração e apreensão para fins de perdimento de veículos e mercadorias, mas tal informação sempre vem expressa no próprio auto. Resta saber se há aqui mera confusão ou se realmente algumas unidades entendem que os contribuintes fazem jus ao prazo maior em casos de perdimento.

O Decreto 70.235/1972 é a principal norma sobre o contencioso administrativo aduaneiro vigente no Brasil, o qual prevê a competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil para julgamento sobre crédito tributário (e aduaneiro) em primeira instância e ao CARF o julgamento em segunda instância:

Art. 25.  O julgamento do processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal compete:

I – em primeira instância, às Delegacias da Receita Federal de Julgamento, órgãos de deliberação interna e natureza colegiada da Secretaria da Receita Federal;

II – em segunda instância, ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, com atribuição de julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos de natureza especial.

Ressalte-se a existência de uma divisão entre autoridade julgadora e autoridade preparadora (art. 24 e 25 do Decreto 70.235/723). Pode-se sustentar a divisão das fases do processo administrativo aqui analisado da seguinte maneira4: a) fase de instauração; b) fase de preparação; c) fase de julgamento; e d) fase de recurso.

É amplamente difundida a ideia de que a impugnação ao auto de infração e apreensão instaura a fase litigiosa do procedimento5. Aos contribuintes, é imperioso agir com cautela ao se responder intimações fiscais antes da lavratura do auto de infração. Muito embora seja obrigatório o envio de uma resposta, isso não significa, em absoluto, que o contribuinte é obrigado abrir mão ao seu direito fundamental e inalienável ao silêncio (artigo 5º, inciso LXIII, da CF) e nem de produzir provas contra si mesmo.

O rito da Instrução Normativa 2091/2022

Feitas as devidas considerações, fica mais fácil de visualizar o que a Instrução Normativa 2091/2022 está regulamentando ao estabelecer requisitos para o arrolamento de bens e direitos e definir procedimentos para a formalização de representação para propositura de medida cautelar fiscal, como formas de garantir a satisfação do crédito tributário.

Ocorrerá o arrolamento de bens e direitos do contribuinte quando o valor do crédito tributário superar 30% (trinta por cento) do seu patrimônio conhecido e R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais).

A cautelar fiscal ocorrerá nas hipóteses definidas no artigo 18 da IN 2091/22:

Art. 18. Caberá ao Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, no exercício de suas atribuições, decidir pela formalização e encaminhamento de representação para propositura de medida cautelar fiscal perante o titular da respectiva unidade da RFB, nos casos em que o sujeito passivo:

I – sem domicílio certo:

a) intente ausentar-se;

b) intente alienar bens que possui; ou

c) deixe de pagar a obrigação tributária no prazo fixado;

II – com domicílio certo, se ausente ou intente se ausentar, com vistas a elidir o adimplemento da obrigação tributária;

III – em insolvência, aliene ou intente alienar bens;

IV – contraia ou intente contrair dívidas que comprometam a liquidez do seu patrimônio conhecido, conforme definido no art. 3º;

V – notificado para que proceda ao recolhimento do crédito tributário:

a) deixe de pagá-lo no prazo legal, exceto se suspensa a sua exigibilidade; ou

b) transfira ou intente transferir, a qualquer título, seus bens e direitos para terceiros;

VI – possua débitos, inscritos ou não em DAU, que somados ultrapassem 30% (trinta por cento) do seu patrimônio conhecido, conforme definido no art. 3º;

VII – aliene, onere ou transfira bens ou direitos sem proceder à devida comunicação ao órgão da Fazenda Pública nos termos do caput do art. 12;

VIII – tenha sua inscrição no cadastro de contribuintes declarada inapta pelo órgão fazendário; ou

IX – pratique outros atos que dificultem ou impeçam a satisfação do crédito tributário.

A referida IN determina que o contribuinte pode apresentar recurso administrativo no âmbito do processo de arrolamento de bens e direitos, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da ciência da decisão recorrida, nos termos do art. 56 da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999.

O recurso será apreciado, em primeira instância, pelo Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil que lavrou o ato administrativo recorrido.

Em caso de não reconsideração da decisão, encaminhará o recurso ao titular da respectiva unidade e a decisão proferida pelo titular da unidade da RFB competente para analisar o recurso, em segunda instância, será definitiva na esfera administrativa.

Essa tentativa de criar uma espécie de duplo grau recursal na mesma unidade da RFB nos parece passível de ser questionada judicialmente.

O rito simplificado da IN 2091/22 não contém uma revisão independente na esfera administrativa, e não nos parece compatível com a ideia de transparência e imparcialidade internalizada pelo Artigo X do GATT.


Autor: Diogo Bianchi Fazolo. Parte do presente texto foi adaptado do artigo Sistematização do Contencioso em Matéria Aduaneira, apresentado pelo autor na disciplina Teorias do Direito, no Mestrado em Direito da UCB.


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