Perdimento de produtos fumígenos na Reforma Tributária LCP 214/2025
1. Novas regras sobre o perdimento de bens na Lei Complementar 214/2025
A reforma tributária produziu um curioso resultado sobre as sanções aduaneiras ao criar diversas inovações sobre a sanção de perdimento no artigo 428, determinando que “aplica-se a pena de perdimento nas hipóteses de transporte, depósito ou exposição à venda dos produtos fumígenos relacionados no Anexo XVII desacompanhados da documentação fiscal comprobatória de sua procedência”.
A semelhança com o artigo 105, inc. X, do Decreto-Lei 37/66 é inegável:
Art.105 – Aplica-se a pena de perda da mercadoria: X- estrangeira, exposta à venda, depositada ou em circulação comercial no país, se não for feita prova de sua importação regular;
Veja-se que o perdimento de mercadorias da legislação aduaneira (DL 37/66) sanciona a mercadoria estrangeira quando não existe uma documentação comprobatória de sua importação regular. Ou seja, está claramente destinada a mercadorias estrangeiras importadas de maneira irregular.
Com uma redação surpreendentemente pior, a LCP 214/2025 resolveu aplicar o perdimento de produtos fumígenos desacompanhados de documentação fiscal comprobatória de sua procedência. Não há menção aqui às mercadorias importadas ou importação, portanto.
A LCP 214/2025 está sancionando a mercadoria em circulação, depósito ou exposta à venda, ou seja, praticamente qualquer mercadoria que se enquadre como fumígena está sujeita à apreensão para fins de perdimento.
As duas hipóteses infracionais podem incidir sobre a mesma mercadoria, qual seja o cigarro e afins, chamado de produto fumígeno pela reforma tributária, mas existem diferenças substanciais.
O elemento normativo “desacompanhados da documentação fiscal comprobatória de sua procedência” do artigo 428 possui uma abrangência maior do que a hipótese infracional prevista na legislação aduaneira. Aqui podem ser incluídas mercadorias nacionais ou nacionalizadas.
Portanto, a hipótese infracional que gera a aplicação da sanção de perdimento prevista na LCP 214/2025 é ainda mais ampla do que a prevista na legislação aduaneira.
A primeira conclusão é que o legislador produziu uma cópia mal feita do artigo 105, inc. X, do Decreto-Lei 37/66.
2. O que são produtos fumígenos?
Produtos fumígenos são as mercadorias classificadas no capítulo 24 do Sistema Harmonizado, ou seja, se trata de tabaco e seus sucedâneos manufaturados; produtos, mesmo com nicotina, destinados à inalação sem combustão; outros produtos que contenham nicotina destinados à absorção da nicotina pelo corpo humano. A própria LCP 214 faz menção à classificação aduaneira da mercadoria em seu artigo 422, inc. I.
Lembrando que a Secretaria da Receita Federal pode adotar nomenclatura simplificada para a classificação de mercadorias apreendidas, na lavratura do correspondente auto de infração para a aplicação da pena de perdimento, bem como aplicar alíquotas de 50% (cinqüenta por cento) sobre o valor arbitrado dessas mercadorias, para o cálculo do valor estimado do Imposto de Importação e do Imposto sobre Produtos Industrializados que seriam devidos na importação, para efeito de controle patrimonial, elaboração de estatísticas, formalização de processo administrativo fiscal e representação fiscal para fins penais.
Portanto, o legislador da reforma tributária esqueceu de incluir a possibilidade de classificação simplificada e do arbitramento do valor dessa mercadoria para fins de cálculo do valor estimado do Imposto Seletivo, uma vez que o parágrafo primeiro do artigo 428 da LCP 214/2025 autoriza a cobrança do imposto seletivo em casos de perdimento de mercadorias fumígenas.
Desse modo, a classificação precisa observar as regras internacionais de classificação aduaneira.
3. Perdimento de cigarro estrangeiro
O que vai acontecer quando se apreenderem cigarros estrangeiros? Aplicar-se-á o perdimento aduaneiro do Regulamento Aduaneiro ou esse novo perdimento alargado da legislação tributária?
Como existe norma mais específica que incide sobre o cigarro estrangeiro, aplica-se o perdimento aduaneiro sem a cobrança do imposto seletivo.
O perdimento alargado dos produtos fumígenos resta aplicável para os casos em que a origem for desconhecida por ausência de comprovação fiscal. Neste caso, não pode incidir a multa de dois reais por maço de cigarro prevista no artigo 716 do Regulamento Aduaneiro (Art. 716. Aplica-se a multa de R$ 2,00 (dois reais) por maço de cigarro, unidade de charuto ou de cigarrilha, ou quilograma líquido de qualquer outro produto apreendido, na hipótese do art. 693, cumulativamente com o perdimento da respectiva mercadoria).
4. Perdimento do veículo transportador de mercadorias fumígenas
Na hipótese do transporte de mercadorias fumígenas aplica-se também a pena de perdimento ao veículo utilizado, se as circunstâncias evidenciarem que o proprietário do veículo, seu possuidor ou seus prepostos, mediante ação ou omissão, contribuiu para a prática do ilícito, facilitou sua ocorrência ou dela se beneficiou.
Se trata de uma cópia do artigo 95, inc. I, do DL 37/66:
Art.95 – Respondem pela infração: I – conjunta ou isoladamente, quem quer que, de qualquer forma, concorra para sua prática, ou dela se beneficie.
Portanto, aplicam-se as regras da responsabilidade aduaneira à sanção de perdimento de mercadorias fumígenas.
4.1 Presunção de omissão do proprietário do veículo
De acordo com o inc. I do parágrafo 3º do artigo 428 considera-se omissão do proprietário do veículo, seu possuidor ou seus prepostos a não exigência de documentação idônea nas situações em que as características, volume ou quantidade de bens transportados por conta e ordem do contratante ou passageiro permita inferir a prática ilícita.
Trata-se de norma direcionada para o proprietário que é transportador profissional, ou seja, empresas de transporte de pessoas e mercadorias com potencial de criar um caos para as empresas de transporte que passarão a ter que controlar o conteúdo das bagagens dos passageiros.
4.2 Presunção de participação do proprietário nas hipóteses de adaptação da estrutura veicular
O inciso II do mesmo parágrafo 3º estabelece uma presunção de concorrência do proprietário do veículo, seu possuidor ou seus prepostos na prática do ilícito nas situações em que constatada adaptação da estrutura veicular tendente a ocultar as mercadorias transportadas.
Na prática, todas as pessoas mencionadas acima serão incluídas como interessadas no polo passivo do perdimento da mercadoria e do veículo, o que pode gerar a responsabilidade criminal destas mesmas pessoas, conforme explicado abaixo.
4.3 É irrelevante o valor das mercadorias transportadas?
O artigo 428 da LCP 214/2025 prevê basicamente três hipóteses infracionais: transporte, depósito e exposição à venda. No entanto, apenas o transporte é sancionado independentemente do valor das mercadorias, nos termos do inciso III do artigo 428: “é irrelevante a titularidade do veículo e o valor dos bens transportados”.
Trata-se de afronta do legislador à matéria que está pacificada pelo STJ. O Tema 1.143 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu a tese de que o princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar mil maços de cigarros.
A LCP 214/2025 decidiu subverter a tese firmada e estender o perdimento independentemente do valor da mercadoria transportada, ou seja, o transporte de um cigarro sem comprovação de origem pode gerar o perdimento do veículo.
O perdimento da mercadoria, neste caso, irá gerar automaticamente a representação fiscal para fins penais, ou seja, a infração é comunicada ao Ministério Publico Federal para fins de aplicação da sanção penal correspondente ao crime de contrabando. Isso tudo é feito de maneira automática, inexistindo contraditório administrativo na representação, mas apenas do processo administrativo do perdimento da mercadoria.
4.4 Obrigação das locadoras de solicitar antecedentes
Na prática as locadoras já eram sancionadas pela falta de solicitação de antecedentes infracionais quando da apreensão de veículos locados para fins de perdimento.
Agora existe norma com tal previsão:
IV – compete às locadoras de veículos acautelarem-se dos antecedentes dos locatários ou condutores habilitados, sob pena de presunção da sua colaboração para a prática do ilícito.
Ou seja, o legislador criou uma presunção de participação na infração! Quais antecedentes? Em nossa opinião, está se referindo aos antecedentes infracionais no Ministério da Fazenda e antecedentes criminais.
Desse modo, a presunção pode gerar a responsabilidade criminal dos sócios das empresas locadoras, posto que na prática, podem ser incluídas como interessadas no polo passivo do perdimento da mercadoria e do veículo, o que pode gerar a responsabilidade criminal destas mesmas pessoas quando da lavratura da representação fiscal para fins penais.
5. Conclusões
O legislador tributário decidiu fazer uma cópia mal feita e ampliada da sanção aduaneira de perdimento, alargando suas hipóteses infracionais. O grande problema são as presunções e obrigações criadas e que podem gerar a responsabilidade criminal de proprietários de veículos, inclusive transportadores profissionais e locadoras.
A sanção de perdimento de mercadorias fumígenas está direcionada para qualquer mercadoria que não comprove sua origem e, teoricamente, um mísero cigarro, charuto, vape, pod, cigarro eletrônico e afins pode gerar consequências gravosas como o perdimento do veículo e a responsabilidade criminal de todos os envolvidos.
No entanto, apenas resta aplicável quando a origem da mercadoria não for estrangeira, por conta do princípio da especialidade do perdimento aduaneiro.
É surreal que a reforma tributária tenha produzido uma sanção sui generis de perdimento para produtos fumígenos copiando a já existente sanção aduaneira de perdimento, se utilizando de fórmulas de responsabilidade completamente ultrapassadas e desconectadas dos novos paradigmas internacionais assumidos pelo governo brasileiro.
A impressão geral é que se trata de uma inserção para começar a reverter avanços recentes. As presunções inseridas e o ataque ao princípio da proporcionalidade parecem disfarçados para posterior utilização em relação ao perdimento de outras mercadorias. Se a tendência for seguida, os retrocessos inseridos pelo perdimento alargado serão copiados para a legislação aduaneira posteriormente.
Trata-se de um punitivismo inédito até para os padrões brasileiros.
DIOGO BIANCHI FAZOLO, advogado especialista em Direito Aduaneiro, mestre em Direito.